Um dia no SUS
Você sabe o que é passar um dia num hospital de pronto-atendimento do SUS?
Dar entrada no hospital às 14h35;
Passar pela triagem às 15h;
Aguardar horas, várias horas, para receber atendimento às 18h40.
Aguardar outras tantas horas para colher um exame (21h?) e o resultado do exame vir errado e ter que ser colhido novamente, lá pela meia-noite.
Aguardar mais duas ou três horas.
Presenciar centenas de pessoas passando mal, sem condições de serem atendidas com a devida presteza. E não porque haja má vontade, mas são poucos profissionais. Existe má gestão.
Recursos escassos, profissionais com bastante sobrecarga.
Pessoas sofridas com suas dores, agudas e crônicas. Gente com muito pouco recurso emocional, porque a vida é dura o suficiente pra ter espaço pra isso.
Situações que nenhuma pessoa deveria passar, ainda mais num momento de vulnerabilidade, moléstia.
Eu lamento muito. São 4h da manhã e exatamente agora um senhor é retirado da recepção. É um morador da rua, que passa por todo o recinto perturbando as pessoas que aguardam, e perturba suficientemente a ponto da segurança precisar recorrer à guarda municipal. Sim, eu lamento muito.
As pessoas perdem a dignidade. O que fazer?
O senhor está visivelmente alterado e faz mesmo fuzarca. É, no fundo, um homem profundamente sofrido e maltratado. Pela vida, pelo mundo, por si mesmo, por tudo.
E certos caminhos não se refazem.
Como explicar que algumas pessoas façam essa virada e outras acabem presas ao estigma da amargura?
Conforme a vida segue adiante, vai ficando mais difícil acreditar que é possível promover mudanças, embora sempre seja.
Acreditar que se pode recomeçar, refazer, renovar.
E o hospital público no Brasil é um retrato duro, verdadeiro, fiel de todo esse mosaico.
Mas há a gentileza, sempre. Há pequenos gestos de inclusão, de respeito, de consideração. As informações se misturam.
Há a moça da vigilância que, de tempos em tempos, acaba me dando notícias sobre o paciente que está no ambulatório, diminuindo minha angústia de tanto o aguardar.
Há o moço da recepção que tenta localizar uma moradora de rua que não deu entrada nessa unidade, mas que foi encaminhada a uma unidade vizinha, e cujo marido, também morador de rua, encontra-se nesta recepção, suplicando informações e ajuda.
Há pessoas que se ajudam em meio a tanto desalento, sofrimento. Buscar uma cadeira de rodas pra alguém que está saindo de atendimento e precisa chegar ao portão; apontar o local de buscar a senha a alguém que acaba de chegar e entra num cenário de reforma do pronto-atendimento. Alguém que oferece comida a alguém que tem muita fome.
Como o mundo está carente de mais gentileza.
Passa das 6h da manhã quando finalmente deixamos o hospital. Extenuados, sedentos de banho, comida, descanso, rezando pra que aquela dor que nos levou até lá 16 horas atrás, possa passar. Ela ainda está presente, infelizmente.
Saio dali pedindo, no meu pensamento, que as pessoas gestoras sejam mais conscientes e cumpram seus papeis na escala da saúde pública:
Que as licitações aconteçam e sejam fiscalizadas, do início ao fim do processo;
Que os materiais cheguem devidamente, com a qualidade necessária para proteger equipe técnica e pacientes de falhas (evitáveis!) que podem trazer dor e custar vidas, não é exagero;
Que se possa investir em mais profissionais na linha de frente, com capacitação pra não tornar cada paciente apenas mais um número, e sim alguém muito, muito carente, tanto de diagnóstico, quanto de acolhimento no momento da dor.
Brasil, tenho tristeza do retrato que vi nesse dia de SUS.
Foi apenas um dia na minha vida, mas é o "todo dia" de milhões de pessoas. Sejamos mais solidários com quem precisa. Sejamos mais humanos.
Respeito à vida, Brasil.
Respeito à vida.
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